segunda-feira, 31 de maio de 2010

O Velho, a Morte e a Palavra

"É quando a morte beija a vida e a experiência cavalga na vontade de viver que é possível perceber o quanto a vida é efêmera e precisa de cada pedaço do mundo pra existir, seja ele vívido ou mórbido... A morte é a sombra da vida, uma não existe sem a outra; o começo da morte é a vida e a vida torna-se, enfim, um dia, em morte!"

Ele arrumava com carinho sua mala. Meio apressado mas nada que o fizesse esquecer algo importante. Era domingo, dormia até tarde aos domingos. Mas hoje não! Tivera um sonho estranho, algo inquieto que o deixou deveras pensativo; e então acordou cedissimo no domingo e resolveu, assim mesmo de repente, visitar uma casa de repouso - por favor, sem eufemismos - um Asilo. Não sabia bem ao certo o que iria fazer lá. Mas foi. E lá, uma casa lindissima o esperava. Um jardim maravilhoso com árvores frutíferas, azaleias do branco ao rosa. Bancos pintados e de uma delicadeza incontestável. Tudo muito lindo, de dar inveja a qualquer um. Que vontade de passar uns tempos aqui - pensou. Essa sensação de lar não permaneceu por muito tempo, ao entrar na casa um odor colossal de urina masturbou sem esmero suas narinas. O clima pesou tanto que a cada passo que ele dava envelhecia uns quinze anos. O café da manhã batia com força na garganta numa ânsia enorme.
Andava, andava e andava mais. Pelos corredores, que horror! Os velhos apesar de limpos exalavam morte. Os olhares! Ah os olhares; jamais esqueceria daqueles olhares vazios. Era como se gritassem: Mate-me! ou quem sabe, talvez "Abraçe-me". Não sabia definir ao certo.
Acelerou o passo, como se quisesse fugir de monstros e um "o que estou fazendo aqui?" batia forte em todas as suas neuronas...
Cansado, já com um ânimo de como se tivesse envelhecido oitenta anos em menos de vinte passos, sentou num sofá mais duro do que as piores das consciências.
- Que sofá péssimo, que velho sentaria aqui? - disse e neste mesmo instante um velho pigarrento murmurou algo que se pode ouvir por todo o corredor...
"Velho? Quem você está chamando de velho?"
- Desculpe senhor, não queria te acordar.
"Senhor? Você não sabe mesmo nada da vida não é meu jovem?"
- Pois não?
"Escute: O que é velho? O que é novo? Acordar? Quando estamos dormindo? Eu estou aos pés da morte, passei pela estrada da vida inteira. Tive mulher, filhos, netos e um bisneto. Construi uma família linda e uma vida das mais deslumbrantes cores. E hoje eis-me aqui!"
- Mas...
"Não precisa dizer, quer saber o porque que eu estou aqui. Vejo isso em seus olhos. Ora, quem quer um velho lhe estorvando a vida? Uso fraldas meu jovem, tenho mais metal no corpo do que ossos, se é que é possível chamar estas hastes de arame de ossos. Tenho uma pele sanfonada que nem mesmo meu pai me reconheceria. Vim porque acharam que seria a melhor opção. Pra quem? Uhm, pra mim é claro! O que um velho de noventa e um anos precisa mais do que tenho aqui? Sou o mais velho deste lugar, o próximo da lista da morte o nome riscado das páginas da vida."
...
"Não fale nada. Permita-me que eu diga mais do que já disse minha vida toda. Pelo menos algo importante.
Quando se está nesta etapa de pré-morte, você descobre que sua vida passou em um segundo e que não fez a metade do que poderia, ou que chegou a sonhar. E não realizar o seu sonho é um desperdício! Ainda me arrependo em não ter tomado aquele sorvete na praça, de não ter dado boas risadas no bar regado a cachaça de Minas, de não ter beijado Dona Ana... E hoje estou nadando nas minhas próprias fezes esperando que alguém me troque... - o velho sorriu tristemente, mas de uma maneira tão sutil que o jovem sequer percebeu, pegou um papel amassado e uma caneta e escreveu alguma coisa que não consegui identificar - tome e leia apenas quando estiver fora deste lugar. Obedeça-me, certo?
- Tudo bem. Como o Senhor preferir... E...
"Eu ainda não terminei! Como esses jovens são ansiosos! Vou ser breve, não passaremos a tarde aqui e nem vou contar minha história de vida, mesmo porque ela é apenas uma história que morrerá comigo. Minhas dores acabarão, as lágrimas secarão o meu canto não será mais cantado e só. Serei apenas alguém que não existirá mais. Mas antes que isso aconteça quero deixar em você meu rapaz, uma sentelha de vida:
Não deixe que nada seja eterno, não permita que te aprisionem no possível. Seja o que desejar ser. As prisões carnais são muito fortes, mas acabam e se você chegar um dia no meu estágio tem que ter a certeza de que foi homem, humano e que esteve sempre no máximo de que pode estar...
Não é nada demais eu sei, mas é algo que talvez possa lhe fazer falta um dia. Agora saia daqui e vá viver!"
E ele saiu, pegou o papel que o velho escreveu tremulamente em letra quase ilegível e, com a ansiedade de uma criança no vinte e quatro de Dezembro as onze e meia, o leu.
Dizia:
"Não tenho patrão se não os meus desejos e minha punição é unicamente a minha consciência. É assim que vivi. É assim que se vive para uma morte sem precisar olhar pra trás pois tudo que necessita está bem aqui ao seu lado."
- Dário. Dário. Acorda! - disse sua mãe.
- Ãn? Nossa, estou atrasado...
E ele acordou, era uma quarta-feira. Atrasado pro trabalho. Mas aquele sonho quase real foi tão forte que ficou cravado em sua memória.
Os anos foram passando, sua família foi construída. Teve mulher, filhos, netos e um bisneto. Todas as noites lembrava daquele sonho, e quando viu seus filhos discutindo com quem ele ficaria aos finais de semana e um justificando ao outro o porquê de que não podia ser consigo, feliz e seguramente bem disse sorrindo como se a vida lhe abrisse o sorriso de adeus:
"Levem-me para um asilo!"

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