sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Goma de Mascar

Ele mascava chiclete. Eu sempre odiei chicletes.

Era um dia como outro qualquer. Com os olhos exaustos de um dia inteiro, sentei no banco do ônibus como quem repousa numa rede em pleno início de férias. Era segunda-feira. Fechei as pálpebras na ânsia de ter o maior prazer dos que madrugam para a labuta, dormir no transporte público. Não alcancei sequer o cochilo, escutava um som distante mas irritante vindo de algum maldito fone de ouvido. Parecia rock ‘n’ roll barato. Estiquei um pouco o corpo para frente seguindo aquela música indefinida e estridente. Uma cabeleira loira, um pouco arruivada é bem verdade, mas os fios doirados eram maioria. Agora não sei se eram dourados ou os meus olhos cansados que os pintaram assim, mas como gosto das imagens que crio, deixo-os tingidos aos sabor dos meus desejos.

Cabelos curtos. Cortados aleatoriamente, não chegando a ser desgrenhados. Ele era um belo rapaz, pude perceber em uma pequena virada para o lado da janela. Um perfil simétrico. Notei o maxilar aquadradado, marcando bem o semblante de homem, porém a pele alva e sem pelo, deixou um ar angelical que me fez ajeitar a rola umas quatro vezes para o lado; ela teimava em querer sair pelo cós da calça jeans.

Desde então não parei de observar esse cara. Sentei um pouco mais para o lado, o que me deu um ponto de visão estratégica. Eu tinha a fresta do banco, um cânion para meus olhos de gavião.

Virou mais uma vez o rosto, olhava a rua através do vidro ensebado do ônibus, via um mundo de sebo. Ele mascava chiclete. O maxilar quadrado se mexia sob a pele branca como uma alavanca que abre os portões de um forte medieval. O queixo fazia movimentos hipnotizantes e circulares lembrando muito uma minibunda que rebola em algum ritual de iniciação sexual da Antiga Grécia a algum deus do vinho; o barulho estalado que vinha do interno da sua boca era paralizador. Esse tom bucólico entoava cânticos de lascícia. Era o som de um encantador de serpentes. A minha estava encantada.

Mascava. Mascava. Ruminava uma pasta densa que esvaia açúcares pela língua, dentes e garganta. Seus lábios, pequenos e pintados em dregradé do rosa ao vermelho, lentamente se abriram em movimentos de rodamoinho, a língua empurrava a goma para fora e seus dentes a seguravam pelas extremidades. O chiclete, inflado pelo fôlego juvenil do garoto, ganhou forma elíptica, redonda e grande. Uma bola rosa que estava ligada àquela boquinha que mais parecia um cu por filamentos tuti-fruti exalanndo um perfume doce enjoativo que me fez soltar pelo menos duas colheres de sopa de baba no pau. A bola explodiu fazendo a goma grudar em parte de seu rosto.

O processo de desunção do chiclete foi rápido, mas exigiu da língua um esforço grande de contorção. Ela se mostrou inteira para mim. Suas reviravoltas revelaram uma habilidade de lambida que me fez por várias vezes soltar mínimos gemidos de satisfação. Em poucos segundos, o ritual de mastigação retornou e a hipnoze deu continuidade ao meu tesão.

Não consegui contar quantas vezes esse ato se repetiu, menos ainda quantas bolas saíram em vários tamanhos e densidades do rosa.

Ele sabia que eu o observava. E gostava disso. Não sei dizer se eu gostava, sei que não conseguia olhar para mais nada, sequer sabia onde estava e seu meu ponto já havia passado. Eu não sabia mais de nada da vida.

Perscrutar aquela cena se tornou para mim ato de tragédia grega. Ao passo que meu pau latejava na viagem  da dança que aqueles lábios faziam, minha mente me envenenava com um sabor amargo na boca. Eu o desejava mais do que estar em casa. Queria que sua língua fosse o meu lar, o lar doce lar de minha rola grossa. Doia-me, quem sabe?, o fato de ser eu um homem e ele um garoto ainda sem gênero definido, quiçá virgem, puro sem as maldades que uma gozada trás.

A quem estava me enganando. O puto estava fazendo uma dança de acasalamento, mostrando todas as habilidades que sua boca nauseante pode fazer e eu, idiota que sou, pensando em inocência de sua pureza. Às favas! Eu queria fudê-lo. Sem me preocupar com seu nome e/ou história. Queria criar um estória, na qual ele é o meu buraquinho...

Pausa.

Num ato de profanação, ele quebra meu transe levantando sua mão. Estranha. Órgão com cinco tentáculos, unhas comidas de ansiedade e ligeiramente sujas. Abre a janela embaçada e o vento traz um mal estar, aliás, um não-estar, deixando meu pau, já quase gozado, frapé, mole, escondido, caramujado, quase nulo. Ele espreme os lábios quase secos como um canhão e como quem atira contra crianças atira o chiclete para fora do ônibus.

A goma rosa cai no asfalto cinza, que a deixa rançosa e esbranquiçada. Não sentia mais o aroma doce e as bola não existiam mais. A potência desta cena me causou um desespero, como se minha vida não tivesse continuidade.Que eu parasse ali.

Ele deu o sinal, desceu antes mesmo que visse nada mais do que uma sombra rasgante.

Eu estava perto de casa, desci, ainda em meia à danação dos meus pensamentos. Quando cheguei, entrei no banheiro e bati uma punheta rápida. Gosmei uma goma como ranho branco. Acinzentada. Caiu no chão como o chiclete que ainda assombrava minha lembrança. Deixei lá para secar, como uma mancha no espírito, um cisco no universo humano para o marco da minha luxúria. Esse era o meu chiclete, que em pensamento o garoto há de sempre mascar sem poder cuspir.

Ele mascava chiclete. Eu sempre odiei chicletes.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Todo Sangue Tem Culpa


O elemento que transita da vida para morte





“Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!”

A Obsessão do Sangue, de Augusto dos Anjos


O que nos vem à mente quando falamos em sangue? A morte. Geralmente é esta a sombra que esta palavra esconde na sua semântica. Mas desconfio que esta palavra abrace muito mais sentidos do que pode-se perceber em uma primeira reflexão.

A condição humana tem ligação direta com o sangue no decorrer de toda a sua vida, desde o ato sexual, à estadia no ventre, o nascimento e até a morte.

O sangue rega os órgãos sexuais preparando-os para o coito. Somente com sangue o pênis fica ereto e pronto para o coito. E é com este mesmo elemento que o útero é irrigado e alimentado. E no caso de sua morte, o sangue é usado para purificação da vagina, no processo da menstruação.

É este líquido rubro que injeta vida no útero fecundo e o alimenta pelos nove meses. Esse alimento não fica apenas nas vitaminas e minerais precisas para a geração da vida. Desde esse momento o sangue já pré-escreve parte do destino da futura pessoa que se desenvolve. O sangue carrega toda carga genética do pai e da mãe, desde olhos azuis a doenças incuráveis. A responsabilidade do nome que a família é levada também pelo elemento vermelho, claro que hoje em dia não tem tanta força neste quesito, mas ainda pode ser levado em consideração. O sangue tem sobrenome e com ele carrega-se as urgências da família, sejam elas dívidas ou heranças.

O parto é uma das manifestações de violência interna mais distinta.Obviamente o sangue é parte primária e precisa para o ato. Ele anuncia a chegada da criança, e não só isso, o sangue tem como função o rito de passagem. Ele marca presença em boa parte da mudança na vida humana. O bebê nasce banhado em sangue, aos berros, dizendo ao mundo que está vivo. O vermelho da vida completa seu primeiro ciclo.

O sangue antes dos nove meses completos pode ser como a violência da mulher em expulsar o corpo estranho que carrega, neste caso, o sangue é uma das vozes da morte.

A sombra da morte sob a presença do sangue é um dogma do proibido e da violência à vida.

Na infância, o sangue é tido como oposição à vida. Geralmente, a criança tem medo e ao se deparar com o elemento frente a frente cai no pranto. Ao passo que crescemos, já no período adolescente, o líquido nos vem novamente para selar mais uma fase da vida. A menina encara o sangue na sua primeira menstruação. Marco que inicia a primeira mudança drástica de sua vida. Mais um ato violento que desnatura a inocência da criança, dando lugar aos anseios da carne. O sangue se torna o troféu do rito de passagem para o anúncio que consagra a menina em mulher. Agora ela poderá gerar vida. E mês a mês, terá em seus dias toda a vermelhidão da vida. Logo mais, ao perder a virgindade, o sangue discretamente aparece como porta-voz  da flâmula do desejo. Essa violência é interna no homem, o sangue encharca o pênis deixando-o rígido e transformando-o em ferramenta sexual, o instrumento do prazer e a pilastra geradora da vida.

A violência à carne é o ato que põe o sangue à mostra. Ele é o líquido da vida, e nele está presente todos os componentes de cicatrização que o corpo precisa. Sangrar é sinal de saúde. O suicida, consciente disso, derrama seu sangue para se livrar da própria vida.

Na ficção o sangue aparece inúmeras vezes, uma delas é o caso do vampirismo. Esse é um exemplo muito relevante. O vampiro, como ser morto-vivo, precisa se alimentar da vida humana para que ele possa continuar a viver. Este alimento é por sua vez o sangue. É nele que a criatura encontra os nutrientes necessários para seu sustento. Precisa de sangue quente, recém tirando se seu fornecedor. Ao passo que o vampiro suga o sangue de sua vítima, ele inicia uma transfusão de vida. O agressor ganha a vida, enquanto a pessoa a perde.

Nós, os humanos, nos alimentamos da carne animal, que por sua vez, é irrigada em sangue desde sua criação. E dela tiramos as nossas proteínas, que são cruciais para nos mantermos vivos. O sangue irriga o ciclo da vida.

A religião cultua o sangue. Desde a Antiga Grécia em seus sacrifícios para os deuses ao Cristianismo com sua comunhão ao divino. O vinho representa o sangue, e bebemos ele para nos elevar espiritualmente, ou seja, revigorar a vida. Nos rituais africanos, o iniciado é banhado em sangue de animal para simbolizar o seu nascimento com as novas revelações da religião.

Os deuses gregos precisavam de vida e sangue para sua adoração. Os cristãos precisam, em um ato antropofágico, se alimentar do sangue de seu deus para que purificação da própria carne e espírito.

Não defendendo nenhum conceito religioso, apenas no intuito de levantar dados, vemos que o sangue é presente na maioria das religiões e na quase sempre tem o mesmo manto semântico.

O antropofagismo é uma marca célebre do sangue como tônico revigorante para quem o praticou. O agressor em busca de força e conhecimento se alimenta do outro para aderir as habilidades que a sua refeição humana possuia.

O sangue sempre foi o símbolo dos pactos, sejam eles satânicos ou até entre duas pessoas. Juram com sangue algo que não pode ser maculado. Ou com o elemento garantem a venda de sua vida. O sangue carregando todo seu material genético, nada mais claro que seja com ele a marca do pacto.

O sangue é o selo que une a vida e a morte em um mesmo ciclo. Ele nunca é ou pode ser considerado inocente em sua presença. Por ser um elemento carregado de sentido, jamais sua aparição será inútil, ele sempre tem algo a dizer, e com certeza, a vida, a morte ou a violência serão plano de fundo de um acontecimento de transição da vida animal.