segunda-feira, 10 de maio de 2010

O REALEJO

No fim da rua escura um som antiquado e frenético ressoava pelos becos das casas. Mas a rua permanecia completamente nua. Não havia uma viva alma; até mesmo o próprio vento negara sua presença. Somente o som quimérico de um realejo pairava no ar. No meio do sereno surge um velho sujo e misterioso com o olhar cético como se levasse consigo a dor da humanidade de todas as eras. Carregava com sofreguidão o realejo cinza girando a manivela e iniciando aquele som amaldiçoado que nadava na inécia da rua nua. Havia uma ave dentro do realejo, não tinha muitas penas, e sim, muitas feridas e seu bico não fechava por inteiro. A rua emanava morte e exalava um odor muito parecido com o das lápides...

Gira a manivela e toca-se a música.
A ave colhe o bilhete impresso
E nele, em síntese, o seu destino!
O Realejo come vontades e aspira
Os desejos dos sonhadores.
Coitados!
Mau sabem eles que o homem torpe
E sem nome escreve bêbado
O que para ele não tem sentido!
E no papel que a jovem inocente
e bela e triste e travessa
Ganhara estava escrito:
"O Amor, meus caros, não tem definição, tem pressa!"

E ela sorriu como uma flor toda banhada de sol e pequenamente disse:
Meu senhor, o Amor não tem pressa, e também não pode ser definido, pois é mister que a sua grandeza não possa ser medida pelo homem. Se isso um dia acontecesse o Amor acabaria. Tudo o que o homem pôde definir sucumbiu à sua descrença... O dia que a ciência descobrir o que é o Amor, ele deixará de existir. O mesmo aconteceria com Deus e todos os outros santos, anjos, orixás e suas divindades.
É o homem que tem pressa. Ele é uma locomotiva viva descarrilhada em busca de um progresso que nem mesmo ele entende... Mas não falemos de metafísica! Apenas olha esta rua nua e fria enquanto eu me despeço, de qualquer forma obrigada pelo bilhete impresso...

E num súbito momento a menina se fundiu com a bruma e da mesma forma que amanhece o sol ela desapareceu...
E o velho bêbado sorriu uma interrogação e dentre os soluços da bebedeira bolbulciou algo parecido com isso:

- "Um criança que guarda em si o sentido da vida não faz muito sentido a um velho; mas depois dos setenta anos nada precisa fazer sentido..."

Ele soltou a ave que voou sem pensar em nada. Deixou cair o realejo, que se desmontou inteiro no chão. Foi andando até o fim rua nua e fria e deitou junto ao meio fio. Deu um trago forte no seu conhaque, tossiu, sorriu e, ao som de um realejo distante, morreu.

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