segunda-feira, 19 de julho de 2010

O Amanhecer de Rita

Era manhã. Rita não tinha a menor ideia de que estava sendo observada. Enquanto andava um par de olhos assíduos, duros e permanentes a fitavam sem parar. Rita andava pela cozinha, pela sala e até mesmo no banheiro, lugar ápice da intimidade de uma mulher; ela ainda era olhada. Passadas já algumas horas uma sensação estranha dominava Rita. Era como se o silêncio da casa vazia fosse maculado por um eco de agonia que reboava de dentro de suas entranhas vermelhas. Estava grávida. Era um ser, uma vida que batia em suas paredes rubras de mulher. Um desespero aterrador a envolveu, a tarde tonara-se fria como o mármore; era como se o céu cantasse em tristíssimos sopranos a sua gravidez. Sentou-se sozinha no chão da cozinha. Enquanto contava as manchas de seu avental chorava bruscamente a vida que se desenvolvia dentro de si. Após secarem todas suas lágrimas a vontade de chorar continuava forte em seu âmago. Tentava chorar, mas seus olhos sentia enxutos. Porque foi amaldiçoada por uma gravidez? Perguntava-se inúmeras vezes. Uma vidazinha que começara dentro de si, porque era tão terrível assim o que para tantas seria uma benção?

O som dos sapatos de Arnaldo batia forte no taco velho da sala desarrumada. Este som cansado, de quem havia trabalhado o dia inteiro. A cada segundo o som parecia mais forte, mais perto. O que ele pensaria quando descobrisse a sua paternidade? Um fruto inesperado do matrimônio, que desgraça! Exatamente isso que ele iria pensar. Decidiu então não contar nada. Absolutamente nada. Correu desesperada para o banheiro. Castelo de toda mulher. Refúgio de qualquer desesperado. Um escape da vida real para qualquer um que vive em família. Maquiou-se lindamente como se fosse casar pela segunda vez. Beijou os lábios carnudos e cansados de Arnaldo. Sorriu uma alegria enganosa que nem mesmo as janelas acreditaram. Mas como todo marido exemplar não a olhou nos olhos e muito menos perguntou como tinha sido seu dia. Apenas praguejou cada hora daquela segunda-feira cinza como estanho.
Sentados no sofá como todo casal perfeito. Um ao lado do outro e o elo do casamento à frente deles, o televisor. Digo a Rita que perdi o emprego agora ou na cama após o sexo? Perguntava-se a cada comercial da novela. Claro não havia espaço para pensar durante a novela que nos ensina como devemos ser. Estou grávida. Estou malditamente grávida! Era o pensamento de Rita...
Estavam deitados na cama. Era uma madrugada fria. Fria? Não. Era uma madrugada sozinha. A noite caminha sozinha e abominante nas ruas da metrópole. Rita fingia que dormia como um bebê. O que a fazia se sentir pior ainda. Arnaldo revirava-se fungando fundo o que impedia até mesmo o vento de uivar nas curvas da casa velha e rude. Aquela noite durou umas quinze décadas. Era quase aurora. E que aurora! Alaranjada, vermelha, sangrenta como a morte. Rita levantou-se por impulso. Olhou Arnaldo que não se mexia mais na cama. Estava morto. Cansado e morto. Rita expeliu um grito tão forte que o dia não amanheceu, e sim, abortou o sol que a noite esperava. Foi à cozinha, colocou uma chaleira no fogo, sentou-se à mesa e chorou por uma vida inteira. O som da chaleira era um clamor de agonia das dores todas do mundo. Rita segurou uma faca e foi até o único lugar que era seu, que podia ser ela mesma: o banheiro. Tomou um banho, maquiou-se. Sorriu para o espelho mas ele não refletiu esse sorriso. E para si mesma disse algo que não entendera. Era sua alma falando.

"Não existe sinceridade no amor. Tudo que temos é uma troca. Espero de um amor tudo que meu amor lhe dá. Isso não é sinceridade. Eu não amava Arnaldo. Não amo essa criança. Mas me amo. Espero de mim tudo que não tenho aqui. Sou mulher, lúcida e presa. Presa numa vida, num casulo amaldiçoado. Não posso trazer um fruto de um casulo infeliz..."

Disse e porque isso disse fechou os olhos e viu-se em frente ao mar. Ondas enormes batendo nas pedras. Sorriu. Sentia-se livre, alada. Seus membros eram de aço, rígidos e amolados. E ao fim da noite, estripou-se com o próprio braço. Amanheceu. Agora, era uma mulher feliz.

sábado, 17 de julho de 2010

Ensaio para Vida Real

Costumamos sempre crer que a família é o centro de tudo. Depois são nossos amigos, passa-se o tempo o (a) namoradinho (inha), o amorzinho torna-se o centro de toda vida... Todo esse amor é odioso! Viver nesse mundinho de ilusões amorosas, de idealizações de algo que fantasiamos é como matar a sede com a água do seu vaso sanitário.

E eu a cada instante mais lúcido, mais acordado, percebi que tudo que passei até agora foi como um ensaio pra vida real. Como um manual de instruções que foi me dado antes da viver.

Tudo antes me parecia sem sentido algum. Recentemente, qualquer coisa que eu olho me dá adeus. Tudo e todos, parecem-me, no fundo, dizer adeus. Foi terrível perceber; pensei no começo que as pessoas tinham mudado comigo, todas elas, mas, não! Eu mudei, aliás: estou mudando. Ando e observo. O mundo passa diante dos meus olhos acenando com as mãos, como se despedisse de mim...

Estou derrotado, com a honra masculina maculada e amargo. Lúcido e amargo. Sólido e totalmente amarelo. Sinto-me, muitas vezes, como um altar sacrilegiado pelo infiel que rasga a batina no desespero do último momento.

Não tenho medo da morte. O que mais temo é o tempo que vai passar até eu chegar até ela. Como serão esses anos? Longos como estão são esses que passo hoje? Curtos para que eu não consiga construir nada?Afinal de que me adianta tanto sofrimento? A justiça é cega, bem sabemos. Mas onde está sua audição enquanto clamo nas madrugadas?

Três e trinta e sete da manhã, já é domingo e mais um dia se passa...

Casulo duma Metamorfose

Metamosfose. Exatamente isso! Estou passando por uma entorpecente metamosfose. Estou preso a um casulo tecido por vontades, gente, muita gente e experiências. A cada segundo, e por todos os lugares que passo, todas as pessoas que conheço tecem um pouco mais este casulo que aos poucos me transforma. Estou sólido, rígido como as armas forjadas no Olimpo. E mais além de tudo isso, no cerne, no âmago, estou petrificado. Presenciei tantas agruras! Tudo que vi e revi (tudo soa tão previsível!) me petrificou, vi o horror da face da Medusa no mundo e agora estou sólido, branco, crepuscular e estático. No entanto estou , de certa forma, paciente. Esperarei essa metamorfose se completar. E quando o casulo se romper, meu caros, sinto-lhes dizer que partirei. Nasci para partir, vivo por ir embora. Respiro o vento que, um dia, há de me levar para bem longe. E que o sabor agri-doce da saudade pare na perpétua grade dum verso de Virgílio: “Libertas quae sera tamen”.

quinta-feira, 8 de julho de 2010


PARA SUAS PRIMAVERAS


ao aniversário de meu pai

A oito de Julho e era manhã. E a força, tirado a aço
O dia sorriu o natalício máximo de meu progenitor,
Aquele que me acolhe na treva, no gemido de dor
Agarrando-me, em ânsias, a alma com o próprio braço!

Voltou da morte, o ressurgido do abismo profundo!
Óh anjo-cigano que poder esconde nos olhos castanhos?
O amor que emana de suas mãos, como cem rebanhos
Nocauteia-me e faz-me girar cinco vezes ao redor do mundo!

E quantas vezes eu, pessimista como sou, não lhe desafiei
Diante as peripécias e maleficências da vida e da morte?
E sempre, como todo pai ioiô faz, e o por quê ainda não sei,

A ti, um sorriso, abrirei na explosão de um rubor forte.
Pois não tenho nada senão estas palavras que lhe confiei.
Amo-te deveras, e para amar, meu rei, não preciso de Sorte!

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O Desejo Lamentado

O LAMENTO DAS COISAS

Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!

E a dor da Força desaproveitada
- O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza.
Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é em suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!

Augusto dos Anjos

"No fim tudo dá certo." - Ãn? Quem quer que tudo dê certo apenas no fim? Não é justo este pensamento! A gente tem que esperar o fim das coisas pra que algo realmente bom aconteça? Desculpem-me mas, não quero que seja assim! Pensamento medíocre, pequeno. Tudo tem que dar certo ou errado ao longo do percurso. Durante a caminhada. Caso contrário não faz sentido ir em frente. Atravessar um deserto inteiro por um copo d'água não me parece muito esperto. Não sou contra as lutas de vida e morte, sou inteiramente contra a esses pensamentos pequenos e rudimentares de que ''tudo vai dar certo no fim'' - como assim? Fim? Fim de quê? Da vida? - E esse positivismo cego... Socorro! Mas que mania de pensamento positivo é esse? Sinceramente isso é pura auto-piedade! Não é só porque você pensa (ou diz que pensa) que tudo vai se resolver é que vão mesmo. O mundo gira a gente vivo ou não, o vento venta sejamos bons ou ruins. O mesmo acontece com todo o resto. É sorte! Essa carnívora assanhada que come os corações dos seus servos! Creio que a essência do pensamento de hoje está no "Lamento das Coisas" de Augusto dos Anjos... No mais, é possível que eu tenha exagerado (quem sabe?) mas no entanto eu preciso mesmo exagerar! Afinal eu preciso suprir a falta que tenho, ninguém melhor do que eu mesmo...

''os olhos fechados são portas abertas para meu mundo, e nele entra os que não têm medo do insano..."

terça-feira, 6 de julho de 2010

Rascunho

E tudo no mundo, enquanto ando e observo, é extra-terrestre. Na mais terrível desesperação que se pode ter. Nada parece familiar. Tudo, sim eu digo tudo, não faz parte do mundo que vivo. Esta falta de compaixão. Falta de política. De Ética. De tudo. Essa carência que o mundo emana. Um lixo extra-terrestre.

Ainda não entendo como funciona essa coisa de sorte. Sei que uns têm outros não. Eu não tenho! E me desculpem todos os mestres mas, de que me servem todos os romances, histórias, estórias e líricas? Se há buracos na minha cueca. Machado me faz ter epifanias na alma, mas e minhas contas? Quem pagará? E vem a realidade como uma sombra absurda assombrar-me à mente. Estou fazendo a coisa certa? Escolhi mesmo o rumo certo? Apesar de as letras me alimentarem a vida ultimamente elas não fazem (ou podem fazer) nada além disso.

Como me dói dizer isso. Como me sinto violado sacrilegiando todos os que me acolhem todas as noites. Mas meu ódio é tão intenso que, ao pesar do último momento, odeio o amor que sinto por eles! Não posso deixá-los, mesmo sabendo que se não o fizer posso me perder na miserável vida do não viver...

Não vivemos de amor. Mesmo sabendo que ele é muito importante. Mesmo sendo amado por tantos. Tantos que nos querem bem. Mas... Entende? O amor é algo tão subjetivo que nem sempre, ou quase nunca, faz alguma diferença no mundo que vivemos.

A cada dia que passa me vejo mais longe dos que queria perto de mim. Ah meus amigos, por que estamos cada vez mais longe uns dos outros? Sinto-me na obrigação de ir embora. A cada dia vou me mutando para âncora enquanto todos vós são balões de ar quente, não posso acompanhá-los. São viagens, bares, sorrisos, alegrias e enlaces que não posso pagar. Desculpem-me todos. Eu não posso ir...

Tudo à frente é rascunho, esboço de algo que posso não terminar um dia...

sábado, 3 de julho de 2010

A palavra que não diz

“falas de amor pra mim, eu ouço tudo e calo” – Augusto dos Anjos

Mais que dia ensolarado. Repleto de emoções aos que querem tê-las. E eu a cada dia mais lúcido. Sim, lúcido. Insano e lúcido. Vejo os carros que passam. As pessoas que choram e riem. Os cachorros que coçam sua sarna e os gatos que pulam nos telhados na madrugada; escuto os ratos roerem toda a consciência humana debaixo do assoalho. Tenho medo, e meu medo não este medo que a humanidade sova todos os dias. Tenho medo da falta de medo que sinto. Medo da falta de tudo que me assola. Não temos mais o Futuro, não temo os inimigos, não temos a morte e nem mais a miséria.
Nesta semana, como uma guilhotina justiceira minha consciência desceu graciosa e certeira à jugular. Não estou triste. Não estou feliz. Estou lúcido, consciente. Todo e qualquer receio ou preocupação que me dilacerava morreu ontem à noite. Tudo se tornou medo de criança, e de alguma forma eu cresci (ainda não descobri se isso é bom ou ruim).

Vejo os amantes, ouço as juras de amor. Tudo me parece tão falho. Sem alma, sem vida... Que amor é esse que vocês amam? Este amor que fala e não vê, que ri e não chora. Que juras são essas que jurais? Por que fala da eternidade sem mesmo a conhecer? E digo não só porque já ouvi e disse tudo isso, mas sim, porque ouço a cada esquina, nas pessoas que não conheço, nas que costumo ver, nas que amo... Coitados!

Penso, muitas vezes, que sou uma criatura metamorfa retirada de um quadro de Dali. Eu não quero ter emoções, eu não quero ser estéril. Quero apenas viver. Algo além da sorte e do azar, do amor e do ódio que nem Deus e nem o Diabo possam intervir sobre esse ser fantástico que cá escreve no Terra Efêmera.

Escutem. Estão ouvindo? Não? É Réquiem! Não? Nada? E nem estão vendo isso imagino eu... São os guerreiros do Apocalipse jogando cartas, truco talvez. Sentem esse gosto? Agri-doce. E o cheiro de ferro? Nada não? Enfim, coitados... Coitados...

Temos mania de dizer que os mortos não falam, porém os vivos também não dizem nada. Como já disse Graciliano, a palavra foi feita pra dizer e não para enfeitar. Prefiro o silêncio do sepulcro aos adornos da boca imatura.