terça-feira, 14 de maio de 2013

Pessegal


Já de longe se avistava a placa típica: Recanto Pôr do Sol. Toda casa de repouso tem nomes relacionados com fim da tarde, uma alusão que beira o filhadaputismo. A casa aparentava ser como um sobrado qualquer num bairro pacato da cidade. De fronte, um portão de ferro pintado de um amarelo claro. Com pequenos detalhes de cinza chumbo, o interfone é o elo entre o asilo com o mundo impossivelmente real.


O quintal muito bem decorado com várias árvores carregadas de flores e frutas. Suas copas denotavam certa fragilidade, apesar de aparentar velhas o suficiente para serem fortes. Alguma coisa nelas causava um pavor. Ora os caules mostravam rugas quase humanas e desprendiam uma casca marrom-apretejada, ora algumas folhas que secavam ainda no pé mostrando o lado sombrio da vida. Fora as raízes salientando ondas que emergiam da terra, intercalando um serpentear profundo e delicado; as frutas no chão já apodrecidas incensam o espaço como um turíbulo queimando pedras do passado.


As paredes que ladeavam a área mostravam que um dia foram amarelas, mas as cores da umidade e do tempo decoravam de forma heterogênea, mesclando todas as memórias que o local tentava esquecer com a ligeira esperança que a vida reverbera até mesmo no bolor de uma simples parede.


Ana estava sentada numa cadeira que não era de balanço, mas a cada mover de seu usuário se remexia como um alto prédio impulsionado pelo vento forte. A cadeira rangia as perdas, Ana rangia os dentes de porcelana gasta. Era hora do banho de sol. Observava cada canto daquele já muito bem conhecido jardim; não se sabe quanto tempo repetiu esta mesma rotina.


No começo, perscrutava cada vegetação, lembrava como era o mundo do lado de fora e não reconhecia o universo o qual agora fazia parte. Com o tempo, passou a contar as flores e visionava o crescimento das plantas. O Alzheimer a impedia de lembrar dos rostos que a trouxeram até este lugar (ainda não se sabe bem ao certo se este fato foi uma maldição ou uma bênção). Ana olhou para as árvores levantando uma das mãos em direção a elas; sua pele muitíssimo branca evidenciava suas veias coradas em azul muito escuro. Via um jardim de rugas. Tudo era tão seco como o caule de uma árvore, inclusive ela. Secos por dentro e por fora. Talvez, quem sabe?, ela era uma das plantas do jardim.


O sol ardia a décima segunda hora. Ana estava sozinha, já era tempo de ser retirada do jardim. Ninguém apareceu. Ana não lembrava da cuidadora, não lembrava que existia uma.


Sede.

Jardim seco.

Sol.

Árvore.

Pessegueiro.

Pêssego.

Desejo.

Ana olhava firmemente para aquele círculo alaranjado pendurado na árvore. O pêssego pintou em seus olhos um brilho de madrepérola. No peito, subia um furor que queimava a partir do umbigo e ia emergindo por dentro, atingindo a garganta que secava mais ainda. A língua procurava algum vestígio de saliva, no entanto, espalhava somente a densa secura de sua boca. A sede aumentava e o sol enérgico nos seus longos raios grossos de calor.

Em um repente, Ana decidiu levantar e colher o fruto do qual lhe causou tanta euforia. O caminho não parecia longo, quinze metros no máximo. Porém, a uma senhora que se movia com dificuldade pelo peso de longos anos e corpo molhado de reflexos endurecidos e músculos notoriamente psedoatrofiados não era um processo muito rápido e fácil.

Apoiando-se na cadeira que rangia sentindo as dores da velha, Ana se colocou de pé, olhava fixamente para o pêssego. Pegou a bengala que sempre esteve ao seu alcance e iniciou o processo de sua odisseia. Uma perna, outra perna com ajuda da bengala de madeira: um passo. Repetidas vezes proferiu a técnica. Pensou em voltar para cadeira, mas o pêssego balança nauseante a chamando por hipnose. Apesar das dores, continuou. Sua vontade e sede aumentavam a cada passo que dava. A fruta cada vez mais reluzente ao som e Ana cada vez mais perto de seu desejo.

A fina camisola balançava com o movimento de Ana. O vento soprava frio o seu corpo cada segundo mais quente. Tinha muito calor, como há muito não sentia. Degustava o sabor de estar viva; sentia sua veias pulsando um sangue um pouco mais líquido e não tão pastoso quanto achava ter.

Via o sol de outra forma a partir de quando estava sob os dedos do pessegueiro. Havia sombra e o astro só a tocava por instantes nas frestas dos galhos e folhas. A sombra era úmida e o ar convidativo, tudo ali era bem-vindo. Ana se sentiu em casa, segura. O pêssego sorriu para Ana.

Pausa.

O tempo começou a passar como se a vida fosse em câmera lenta.

As mãos, ambas erguidas em direção à fruta, subiam temerosas e desengonçadas para a tão esperada colheita. Ana era uma senhora alta comparada às outras, facilmente se destacava, o que a ajudou muito na busca pelo pêssego. Em instantes estava com as mãos preenchidas pelo objeto de seu desejo. Sentiu um pouco de tontura quando o tinha nas mãos, não sabendo se era doença ou emoção.

Para o deleite completo das suas vontades, Ana com todas as dificuldades do mundo, sentou aos pés do pessegueiro, acomodando-se, com ajuda da bengala, em cima da protuberância de uma raiz. Queria um sabor completo, sem intermédio de nada mais além dela mesma. Em um surto insano e senil jogou as dentaduras de porcelana gasta-amarelada no jardim, lambeu os lábios secos pela sede que crestava sua boca, tocou na pele lisa da fruta, acariciando sua maciez e sentiu seu corpo arrepiar.

A terra umedecida tocava sua camisola e Ana sentia molhar as coxas. Gengivas gastas pressionavam a fruta madura. A mordida era imprecisa mas persistente. Ao romper a casca fina do pêssego, um suave líquido abriu caminho na mucosa seca da língua de Ana. Doce. Divinamente doce. Corria como um rio o mel natural daquele sabor. Sua boca pequena e flácida deixava escapar parte do sumo do pêssego, que escorria pelos lados, adoçando seu rosto e fazendo caminhos de sabor que hidratavam a pele de um pescoço já seco há anos.

Ana mordia a fruta com voracidade. Dilacerava o pêssego com a fome de quem nunca comera melado, lambusando-se.

Arrepios ao vento frio. A terra úmida mesclava sua temperatura com a velha, que se retorcia entre as raízes. Ana sentia seu corpo trêmulo, e parecia que a árvore estava se movendo, a escalando de baixo para cima. Seu corpo dizia sim à natureza que emergia de fora para dentro e ao sentido aguçado que explodia de dentro para fora.

Na sua mão, não restava nada a não ser uma grossa e rígida semente embalsamada com restos de sumo do fruto. Seus dedos molhados de doçura.

O sol iluminava em relances os pés de Ana, que observava inerte todo aquele mundo estranho do jardim. Do chão, as plantas todas pareciam enormes, e ela tão pequena.

Ana sentia-se parte de algo que não precisava lembrar do quê. Estava toda tomada em flor; seu corpo florescia uma vida que há muito não sabia suportar. A velha era inteiramente pêssego: úmida, doce e macia. E no embalar do dia que já tornava-se tarde, Ana adormeceu como uma adolescente que acabara de se fazer mulher.



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