terça-feira, 30 de outubro de 2012

Todo Sangue Tem Culpa


O elemento que transita da vida para morte





“Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!”

A Obsessão do Sangue, de Augusto dos Anjos


O que nos vem à mente quando falamos em sangue? A morte. Geralmente é esta a sombra que esta palavra esconde na sua semântica. Mas desconfio que esta palavra abrace muito mais sentidos do que pode-se perceber em uma primeira reflexão.

A condição humana tem ligação direta com o sangue no decorrer de toda a sua vida, desde o ato sexual, à estadia no ventre, o nascimento e até a morte.

O sangue rega os órgãos sexuais preparando-os para o coito. Somente com sangue o pênis fica ereto e pronto para o coito. E é com este mesmo elemento que o útero é irrigado e alimentado. E no caso de sua morte, o sangue é usado para purificação da vagina, no processo da menstruação.

É este líquido rubro que injeta vida no útero fecundo e o alimenta pelos nove meses. Esse alimento não fica apenas nas vitaminas e minerais precisas para a geração da vida. Desde esse momento o sangue já pré-escreve parte do destino da futura pessoa que se desenvolve. O sangue carrega toda carga genética do pai e da mãe, desde olhos azuis a doenças incuráveis. A responsabilidade do nome que a família é levada também pelo elemento vermelho, claro que hoje em dia não tem tanta força neste quesito, mas ainda pode ser levado em consideração. O sangue tem sobrenome e com ele carrega-se as urgências da família, sejam elas dívidas ou heranças.

O parto é uma das manifestações de violência interna mais distinta.Obviamente o sangue é parte primária e precisa para o ato. Ele anuncia a chegada da criança, e não só isso, o sangue tem como função o rito de passagem. Ele marca presença em boa parte da mudança na vida humana. O bebê nasce banhado em sangue, aos berros, dizendo ao mundo que está vivo. O vermelho da vida completa seu primeiro ciclo.

O sangue antes dos nove meses completos pode ser como a violência da mulher em expulsar o corpo estranho que carrega, neste caso, o sangue é uma das vozes da morte.

A sombra da morte sob a presença do sangue é um dogma do proibido e da violência à vida.

Na infância, o sangue é tido como oposição à vida. Geralmente, a criança tem medo e ao se deparar com o elemento frente a frente cai no pranto. Ao passo que crescemos, já no período adolescente, o líquido nos vem novamente para selar mais uma fase da vida. A menina encara o sangue na sua primeira menstruação. Marco que inicia a primeira mudança drástica de sua vida. Mais um ato violento que desnatura a inocência da criança, dando lugar aos anseios da carne. O sangue se torna o troféu do rito de passagem para o anúncio que consagra a menina em mulher. Agora ela poderá gerar vida. E mês a mês, terá em seus dias toda a vermelhidão da vida. Logo mais, ao perder a virgindade, o sangue discretamente aparece como porta-voz  da flâmula do desejo. Essa violência é interna no homem, o sangue encharca o pênis deixando-o rígido e transformando-o em ferramenta sexual, o instrumento do prazer e a pilastra geradora da vida.

A violência à carne é o ato que põe o sangue à mostra. Ele é o líquido da vida, e nele está presente todos os componentes de cicatrização que o corpo precisa. Sangrar é sinal de saúde. O suicida, consciente disso, derrama seu sangue para se livrar da própria vida.

Na ficção o sangue aparece inúmeras vezes, uma delas é o caso do vampirismo. Esse é um exemplo muito relevante. O vampiro, como ser morto-vivo, precisa se alimentar da vida humana para que ele possa continuar a viver. Este alimento é por sua vez o sangue. É nele que a criatura encontra os nutrientes necessários para seu sustento. Precisa de sangue quente, recém tirando se seu fornecedor. Ao passo que o vampiro suga o sangue de sua vítima, ele inicia uma transfusão de vida. O agressor ganha a vida, enquanto a pessoa a perde.

Nós, os humanos, nos alimentamos da carne animal, que por sua vez, é irrigada em sangue desde sua criação. E dela tiramos as nossas proteínas, que são cruciais para nos mantermos vivos. O sangue irriga o ciclo da vida.

A religião cultua o sangue. Desde a Antiga Grécia em seus sacrifícios para os deuses ao Cristianismo com sua comunhão ao divino. O vinho representa o sangue, e bebemos ele para nos elevar espiritualmente, ou seja, revigorar a vida. Nos rituais africanos, o iniciado é banhado em sangue de animal para simbolizar o seu nascimento com as novas revelações da religião.

Os deuses gregos precisavam de vida e sangue para sua adoração. Os cristãos precisam, em um ato antropofágico, se alimentar do sangue de seu deus para que purificação da própria carne e espírito.

Não defendendo nenhum conceito religioso, apenas no intuito de levantar dados, vemos que o sangue é presente na maioria das religiões e na quase sempre tem o mesmo manto semântico.

O antropofagismo é uma marca célebre do sangue como tônico revigorante para quem o praticou. O agressor em busca de força e conhecimento se alimenta do outro para aderir as habilidades que a sua refeição humana possuia.

O sangue sempre foi o símbolo dos pactos, sejam eles satânicos ou até entre duas pessoas. Juram com sangue algo que não pode ser maculado. Ou com o elemento garantem a venda de sua vida. O sangue carregando todo seu material genético, nada mais claro que seja com ele a marca do pacto.

O sangue é o selo que une a vida e a morte em um mesmo ciclo. Ele nunca é ou pode ser considerado inocente em sua presença. Por ser um elemento carregado de sentido, jamais sua aparição será inútil, ele sempre tem algo a dizer, e com certeza, a vida, a morte ou a violência serão plano de fundo de um acontecimento de transição da vida animal.













4 comentários:

  1. "Há uma gota de sangue em cada poesia"
    Mario de Andrade

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  2. Adorei! Até onde não deve estar, reflexo da reação irascível é sangue no zóio!

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  3. "O sangue se torna o troféu do rito de passagem para o anúncio que consagra a menina em mulher. Agora ela poderá gerar vida" Cara, a forma como vc escreveu este acontecimento na vida de uma mulher me chamou muita atenção, o texto inteiro a começar pelo tema, é fantástico. As várias formas em que o sangue aparece, símbolo da vida, mas também da morte! No entanto, esta parte tocou-me pelo arranjo sintagmático e pela aquela maneira de dizer uma coisa, mas utilizando outras palavras! Parabéns Gabriel! Gostei muito do texto e quero ver muito mais por aqui!

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