O elemento que transita da vida para morte
“Levantou-se. E, eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!”
A Obsessão do Sangue, de Augusto dos Anjos
O que nos vem à mente quando falamos em sangue? A morte. Geralmente é esta a sombra que esta palavra esconde na sua semântica. Mas desconfio que esta palavra abrace muito mais sentidos do que pode-se perceber em uma primeira reflexão.
A condição humana tem ligação direta com o sangue no decorrer de toda a sua vida, desde o ato sexual, à estadia no ventre, o nascimento e até a morte.
O sangue rega os órgãos sexuais preparando-os para o coito. Somente com sangue o pênis fica ereto e pronto para o coito. E é com este mesmo elemento que o útero é irrigado e alimentado. E no caso de sua morte, o sangue é usado para purificação da vagina, no processo da menstruação.
É este líquido rubro que injeta vida no útero fecundo e o alimenta pelos nove meses. Esse alimento não fica apenas nas vitaminas e minerais precisas para a geração da vida. Desde esse momento o sangue já pré-escreve parte do destino da futura pessoa que se desenvolve. O sangue carrega toda carga genética do pai e da mãe, desde olhos azuis a doenças incuráveis. A responsabilidade do nome que a família é levada também pelo elemento vermelho, claro que hoje em dia não tem tanta força neste quesito, mas ainda pode ser levado em consideração. O sangue tem sobrenome e com ele carrega-se as urgências da família, sejam elas dívidas ou heranças.
O parto é uma das manifestações de violência interna mais distinta.Obviamente o sangue é parte primária e precisa para o ato. Ele anuncia a chegada da criança, e não só isso, o sangue tem como função o rito de passagem. Ele marca presença em boa parte da mudança na vida humana. O bebê nasce banhado em sangue, aos berros, dizendo ao mundo que está vivo. O vermelho da vida completa seu primeiro ciclo.
O sangue antes dos nove meses completos pode ser como a violência da mulher em expulsar o corpo estranho que carrega, neste caso, o sangue é uma das vozes da morte.
A sombra da morte sob a presença do sangue é um dogma do proibido e da violência à vida.
Na infância, o sangue é tido como oposição à vida. Geralmente, a criança tem medo e ao se deparar com o elemento frente a frente cai no pranto. Ao passo que crescemos, já no período adolescente, o líquido nos vem novamente para selar mais uma fase da vida. A menina encara o sangue na sua primeira menstruação. Marco que inicia a primeira mudança drástica de sua vida. Mais um ato violento que desnatura a inocência da criança, dando lugar aos anseios da carne. O sangue se torna o troféu do rito de passagem para o anúncio que consagra a menina em mulher. Agora ela poderá gerar vida. E mês a mês, terá em seus dias toda a vermelhidão da vida. Logo mais, ao perder a virgindade, o sangue discretamente aparece como porta-voz da flâmula do desejo. Essa violência é interna no homem, o sangue encharca o pênis deixando-o rígido e transformando-o em ferramenta sexual, o instrumento do prazer e a pilastra geradora da vida.
A violência à carne é o ato que põe o sangue à mostra. Ele é o líquido da vida, e nele está presente todos os componentes de cicatrização que o corpo precisa. Sangrar é sinal de saúde. O suicida, consciente disso, derrama seu sangue para se livrar da própria vida.
Na ficção o sangue aparece inúmeras vezes, uma delas é o caso do vampirismo. Esse é um exemplo muito relevante. O vampiro, como ser morto-vivo, precisa se alimentar da vida humana para que ele possa continuar a viver. Este alimento é por sua vez o sangue. É nele que a criatura encontra os nutrientes necessários para seu sustento. Precisa de sangue quente, recém tirando se seu fornecedor. Ao passo que o vampiro suga o sangue de sua vítima, ele inicia uma transfusão de vida. O agressor ganha a vida, enquanto a pessoa a perde.
Nós, os humanos, nos alimentamos da carne animal, que por sua vez, é irrigada em sangue desde sua criação. E dela tiramos as nossas proteínas, que são cruciais para nos mantermos vivos. O sangue irriga o ciclo da vida.
A religião cultua o sangue. Desde a Antiga Grécia em seus sacrifícios para os deuses ao Cristianismo com sua comunhão ao divino. O vinho representa o sangue, e bebemos ele para nos elevar espiritualmente, ou seja, revigorar a vida. Nos rituais africanos, o iniciado é banhado em sangue de animal para simbolizar o seu nascimento com as novas revelações da religião.
Os deuses gregos precisavam de vida e sangue para sua adoração. Os cristãos precisam, em um ato antropofágico, se alimentar do sangue de seu deus para que purificação da própria carne e espírito.
Não defendendo nenhum conceito religioso, apenas no intuito de levantar dados, vemos que o sangue é presente na maioria das religiões e na quase sempre tem o mesmo manto semântico.
O antropofagismo é uma marca célebre do sangue como tônico revigorante para quem o praticou. O agressor em busca de força e conhecimento se alimenta do outro para aderir as habilidades que a sua refeição humana possuia.
O sangue sempre foi o símbolo dos pactos, sejam eles satânicos ou até entre duas pessoas. Juram com sangue algo que não pode ser maculado. Ou com o elemento garantem a venda de sua vida. O sangue carregando todo seu material genético, nada mais claro que seja com ele a marca do pacto.
O sangue é o selo que une a vida e a morte em um mesmo ciclo. Ele nunca é ou pode ser considerado inocente em sua presença. Por ser um elemento carregado de sentido, jamais sua aparição será inútil, ele sempre tem algo a dizer, e com certeza, a vida, a morte ou a violência serão plano de fundo de um acontecimento de transição da vida animal.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir"Há uma gota de sangue em cada poesia"
ResponderExcluirMario de Andrade
Adorei! Até onde não deve estar, reflexo da reação irascível é sangue no zóio!
ResponderExcluir"O sangue se torna o troféu do rito de passagem para o anúncio que consagra a menina em mulher. Agora ela poderá gerar vida" Cara, a forma como vc escreveu este acontecimento na vida de uma mulher me chamou muita atenção, o texto inteiro a começar pelo tema, é fantástico. As várias formas em que o sangue aparece, símbolo da vida, mas também da morte! No entanto, esta parte tocou-me pelo arranjo sintagmático e pela aquela maneira de dizer uma coisa, mas utilizando outras palavras! Parabéns Gabriel! Gostei muito do texto e quero ver muito mais por aqui!
ResponderExcluir