O som dos sapatos de Arnaldo batia forte no taco velho da sala desarrumada. Este som cansado, de quem havia trabalhado o dia inteiro. A cada segundo o som parecia mais forte, mais perto. O que ele pensaria quando descobrisse a sua paternidade? Um fruto inesperado do matrimônio, que desgraça! Exatamente isso que ele iria pensar. Decidiu então não contar nada. Absolutamente nada. Correu desesperada para o banheiro. Castelo de toda mulher. Refúgio de qualquer desesperado. Um escape da vida real para qualquer um que vive em família. Maquiou-se lindamente como se fosse casar pela segunda vez. Beijou os lábios carnudos e cansados de Arnaldo. Sorriu uma alegria enganosa que nem mesmo as janelas acreditaram. Mas como todo marido exemplar não a olhou nos olhos e muito menos perguntou como tinha sido seu dia. Apenas praguejou cada hora daquela segunda-feira cinza como estanho.
Sentados no sofá como todo casal perfeito. Um ao lado do outro e o elo do casamento à frente deles, o televisor. Digo a Rita que perdi o emprego agora ou na cama após o sexo? Perguntava-se a cada comercial da novela. Claro não havia espaço para pensar durante a novela que nos ensina como devemos ser. Estou grávida. Estou malditamente grávida! Era o pensamento de Rita...
Estavam deitados na cama. Era uma madrugada fria. Fria? Não. Era uma madrugada sozinha. A noite caminha sozinha e abominante nas ruas da metrópole. Rita fingia que dormia como um bebê. O que a fazia se sentir pior ainda. Arnaldo revirava-se fungando fundo o que impedia até mesmo o vento de uivar nas curvas da casa velha e rude. Aquela noite durou umas quinze décadas. Era quase aurora. E que aurora! Alaranjada, vermelha, sangrenta como a morte. Rita levantou-se por impulso. Olhou Arnaldo que não se mexia mais na cama. Estava morto. Cansado e morto. Rita expeliu um grito tão forte que o dia não amanheceu, e sim, abortou o sol que a noite esperava. Foi à cozinha, colocou uma chaleira no fogo, sentou-se à mesa e chorou por uma vida inteira. O som da chaleira era um clamor de agonia das dores todas do mundo. Rita segurou uma faca e foi até o único lugar que era seu, que podia ser ela mesma: o banheiro. Tomou um banho, maquiou-se. Sorriu para o espelho mas ele não refletiu esse sorriso. E para si mesma disse algo que não entendera. Era sua alma falando.
"Não existe sinceridade no amor. Tudo que temos é uma troca. Espero de um amor tudo que meu amor lhe dá. Isso não é sinceridade. Eu não amava Arnaldo. Não amo essa criança. Mas me amo. Espero de mim tudo que não tenho aqui. Sou mulher, lúcida e presa. Presa numa vida, num casulo amaldiçoado. Não posso trazer um fruto de um casulo infeliz..."
Disse e porque isso disse fechou os olhos e viu-se em frente ao mar. Ondas enormes batendo nas pedras. Sorriu. Sentia-se livre, alada. Seus membros eram de aço, rígidos e amolados. E ao fim da noite, estripou-se com o próprio braço. Amanheceu. Agora, era uma mulher feliz.
Lampejos brilhantes de Senhor Escritor. Parabéns!
ResponderExcluire foi feito pra mim!!!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirAdorei!